Rádio Chapada



quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Saramago em festa






O rosto de Marx continuava a olhar-lhe com toda a veemência do passado enquanto José Saramago discursava, há três semanas, na sala do Centro de Trabalho do PCP (Partido Comunista Português), na Avenida da Liberdade, em Lisboa. O “camarada Zé” estava às voltas com 300 comunistas, reunidos em homenagem aos dez anos da premiação do escritor com o Nobel de Literatura.


Saramago: comunista 'com orgulho' Também para comemorar seu feito, será construída neste ano em Azinhaga do Ribatejo — aldeia natal de Saramago — uma estátua em sua homenagem. Mas foi entre seus pares, na sala do PCP, que a emoção foi maior. Dos militantes ao secretário-geral do partido, Jerónimo de Sousa, sem contar os vários dirigentes históricos do PCP, como Domingos Abrantes e Albano Nunes — todos eles lá estavam, de pé, para abraçar Saramago.



Antes da homenagem, foi feita a leitura de um trecho de Memorial do Convento. Sofia Ferreira ofereceu ao escritor um ramo de flores. Já o fadista Carlos do Carmo, encarregado de cantar um fado em homenagem a Saramago, contou como escolheu musicar uma ''poesia do Zé'' — Aprendamos o Rito, do livro Poemas Possíveis.



Carmo destacou ainda como a “bomba atômica Pilar” suavizara a relação de ambos. Mulher do escritor, Pilar del Rio declarou da Espanha — onde ela vive — ao Rádio Clube: ''O Nobel é o reconhecimento da Academia Sueca por uma obra que já antes foi reconhecida pelo público''.



Num discurso de três páginas, Jerónimo de Sousa tratou Saramago como “grande escritor”, ressaltando as posições ideológicas do autor de Ensaio sobre a Cegueira. “Creio que a sua condição de comunista e a grandeza da sua obra literária não são facilmente dissociáveis”, disse o dirigente do PCP. “Sem essa condição, a massa humana de muitos dos seus livros não se moveria com o mesmo fulgor — e não se sentiria em muitos deles o penoso, trágico, exultante, contraditório, luminoso, sombrio, incessante movimento da história.''



Lembrando-se da vitória



Na parte final da cerimônia, Saramago agradeceu as palavras de Jerónimo e fez questão de se apresentar, ''com orgulho'', como um comunista. O próprio escritor, militante desde a década de 1960, fez uma revelação. Lembrou que, nos anos 80, Álvaro Cunhal foi “submetido a uma operação de alto risco”. Para o caso de não sobreviver, o grande dirigente comunista escreveu ''algumas cartas'' a ''várias pessoas'', incluindo a ele, José Saramago. ''Felizmente, para todos e para ele, Cunhal sobreviveu, viveu e trabalhou, e as cartas foram destruídas.''



Desconhecia-se o conteúdo da mensagem que cabia ser enviada ao escritor — mas Saramago revelou ter tido conhecimento do que o líder histórico do PCP lhe escreveu. “O camarada Álvaro Cunhal dizia que estava convencido de que eu nunca abandonaria o partido”, afirmou o Nobel da Literatura, ouvido em silêncio. “Ele tinha razão — e aqui estou”, acrescentou Saramago, recebendo então uma ruidosa e emocionada salva de palmas de militantes e amigos do PCP.



O autor português declarou ter escrito, num dos volumes de Cadernos de Lanzarote, quando se comentava a hipótese de receber o Nobel, que jamais “abandonaria as suas convicções políticas e ideológicas” para receber o prêmio. “As coisas correram bem: eu não abandonei as minhas convicções e recebi o Prêmio Nobel.''



Também relembrou o que sentiu quando foi informado de que ganhara o Nobel. Após um momento de incredulidade, a notícia caíra como uma bomba nas redações: o prêmio, naquele ano de 1998, ia para um escritor português — o primeiro (e até agora único) da língua portuguesa a ganhar tal distinção. O agraciado chamava-se José Saramago, na época com 76 anos. Após a estupefação inicial, houve uma onda de entusiasmo e orgulho.



Naquele exato momento, Saramago estava em Frankfurt, na Alemanha. Sozinho, num corredor do aeroporto, com uma capa de chuva no braço, murmurou para si mesmo: “Tenho o Prêmio Nobel. E quê? Não nasci para isto”. Ao receber a premiação na Academia Sueca, a 7 de dezembro de 1998, Saramago se recordou do avô, Jerônimo Melrinho: ''O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever''.



Passada uma década, o autor reconheceu que merece o prêmio “no plano cívico”. Já no plano literário, disse primeiro preferir que “as pessoas julguem” — e depois arrematou que fez jus ao prêmio. “Aqui entre nós, acho que sim'', afirmou o escritor, de novo muito aplaudido, apesar de admitir correr o risco de voltarem a dizer que é vaidoso.



Vitória surpresa?



Embora falada por 200 milhões de pessoas, a língua portuguesa ficara sempre fora das escolhas do comitê sueco — e o fato de o voto ser secreto diminuía ainda mais as esperanças. Sabia-se que o brasileiro Jorge Amado tinha andado pela lista de favoritos num e noutro ano, bem como o português Ferreira de Castro, o autor de A Selva — romance que teve grande popularidade internacional nos anos 30. Mas nenhum deles foi escolhido.



Por isso, parecia tão inacreditável que um português vencesse o Nobel. Havia mais um fator que aumentava o descrédito, mesmo entre os especialistas. É que, nos anos anteriores à vitória de Saramago — durante quase toda a década de 90 —, tinham vencido escritores relativamente desconhecidos. Em 1997, por exemplo, triunfou o italiano Dario Fo — ainda hoje uma escolha difícil de compreender.



Na realidade — agora é fácil percebê-lo —, o Nobel de 1998 não deveria ter surpreendido ninguém. Saramago era um escritor internacional, muito traduzido e lido no estrangeiro, popular não apenas na língua portuguesa. A composição do júri também mudara recentemente — e talvez esse elemento tenha sido importante.



Comparando os premiados até 1997 com os que se seguiram a 1998, o júri se tornou, neste último ano, mais favorável ao estilo pós-moderno, com técnica inovadora e conteúdo mais profundo — os casos de Saramago, Günter Grass, Imre Kertész ou Orhan Pamuk.



Autor controverso



Quando venceu o Nobel, José Saramago tinha uma obra consolidada, com um punhado de romances de grande impacto: Memorial do Convento (1982), O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984); mas também O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991), alvo de uma violenta polêmica, após a exclusão da lista de candidatos ao Prêmio Europeu da Literatura; e aquele que para muitos analistas é talvez o melhor livro do escritor, o Ensaio sobre a Cegueira.



O estilo poético e original fora desenvolvido num livro de 1977, Manual de Pintura e Caligrafia, e aperfeiçoado em Levantado do Chão (1980). Lançados quando Saramago já contava com mais de 55 anos, os dois livros lhe deram fama nacional.



Quando ganhou o Nobel, Saramago tinha 76 anos. Era um autor controverso, que não recusava discussões políticas, comunista assumido, protagonista dos anos turbulentos da revolução. E José Saramago continuou a escrever, desmentindo o mito de que ganhar aquele prêmio marca o fim de uma carreira. A prova é que, em breve, publicará A Viagem do Elefante.

Fonte: www.vermelho.org.br

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