Descente dos nativos desta terra, Maria de Fátima Gomes dos Santos, docemente chamada de Fatinha Gomes aprendeu desde cedo como muitas marias nesta vida a perceber o quanto é injusto o capitalismo. Cantora, comunista, educadora, poeta e feminista. Fatinha encontrou na arte uma forma de humanizar e de lutar. (foto: Allan Bastos)
Alexandre Lucas - Quem é Fatinha Gomes?
Fatinha Gomes - Sou Maria de Fátima, brasileira, tenho 30 anos, filha natural da Cidade do Crato, descendente indígena e espanhola. Militante política, cantora, estudante do Curso de Pedagogia da URCA e observadora de todas as linguagens artísticas que vivencio.
Pertenço a uma família que tem como matriarca uma linda sertaneja: Dona Inês.
Curto muito os movimentos sociais, adoro o espaço verde do Cariri, acredito convictamente numa força criadora que rege o universo, sou muito curiosa por assuntos transcendentais ligados a manifestações religiosas afro-descendente, orientais, e pesquisas voltadas para materialismo-histórico-dialético. Rsrsrs!!!
Tenho uma preocupação voltada para a infância, apoio instituições que trilham planos de ação que favoreçam a educação voltada para crianças e jovens, e que tenha como principio a liberdade e a emancipação do ser humano na sua mais plena realização.
Sou louca por povão, por muita gente (...). Identifico-me com pessoas de comunidades periféricas da minha região, aprecio o que é simples. Posso passar horas conversando sobre vários assuntos, fico muito feliz ao poder me comunicar.
Aprecio os conflitos saudáveis do dia-a-dia, aqueles que nos desmascaram, nos fazem mostrar quem realmente somos.
No mais eu vivo intensamente no campo subjetivo das emoções,sou demasiadamente viva,vivo plenamente e admiro a humanidade por sua diversidade cultural,étnica,geográfica,social,tudo enfim.
Sou perdidamente apaixonada por gente, alucinada por história de vida, por trajetórias pessoais dos amigos que me rodeiam.
Sou muito complexa, intensa, tensa, viva e densa!
Alexandre Lucas - Quando teve inicio seus trabalhos artísticos?
Fatinha Gomes - Muito cedo. Eu tive uma infância muito difícil, ainda criança eu já gostava de cantar, interpretar e dançar, tudo isso para fugir um pouco da realidade em que vivia. Minha casa e a escola onde eu estudava eram os espaços onde manifestava as primeiras inclinações artísticas. Tive meu primeiro curso de dança na SCAC- Sociedade de Cultura Artística do Crato, com a professora Tia Edmar.Foi quando comecei a minha militância com artistas na UEC - União dos Estudantes do Crato onde pude me auto-afirmar através da música,da pintura,da poesia.Nesses primeiros passos pude contar com artistas como Cleivan Paiva,onde vivenciei minhas primeiras aulas de violão e foi com ele também que conheci o CHAMA.Paulinho Lacerda foi meu grande companheiro e incentivador na música.
Alexandre Lucas - Você vem da periferia, isso tem proporcionado um olhar diferente sobre arte?
Fatinha Gomes - Ainda sou de lá, faço parte de tudo o que diz respeito ao meu povo e minhas raízes. Vejo-me em cada um e em cada criança.
O meu olhar se subverteu muito, a arte é o nosso grande estandarte, creio que ela é um importante instrumento de emancipação para todos independente da nossa posição social. A arte pode promover empoderamento intelectual, a arte movimenta nossas possibilidades de sobrevivência e convivência humana. Costumo dizer que não era fácil no meu tempo, mas hoje, com os editais de políticas públicas voltados para arte e para a cultura algumas demandas foram viabilizadas e muitos podem ter na arte um instrumento muito educativo, um intermediador de luta e identidade de um povo.
A periferia é um espaço notável de talento, produção e inspiração artística.
Alexandre Lucas - Quais as suas influências artísticas?
Fatinha Gomes - Muitas. Em se tratando de música eu pude vivenciar do brega, passando pelo baião, jazz...
Hoje posso me deliciar do som da nossa cidade, e em se tratando disso tenho muita admiração pelos grupos populares, o som que vem dos pífanos, dos zabumbas, me remete a ancestralidade, bem como o som dos atabaques e timbres vocais. Tenho respeito por todos os grupos do Cariri, minha maior influência é a resistência de todos eles.
Artistas como você, Ibertson Nobre,João do Crato,Abidoral Jamacaru,Geraldo Júnior,Dihelson Mendonça,André Saraiva,Herdeiros do Rei,Paulinho Lacerda,Luiz Carlos Salatiel,Cleivan Paiva,Zabumbeiros Cariri,Ermano Morais ,Samuel Macedo ,Lifanco,Dr Raiz,Cantigar,Janinha Brito,Di Freitas,os diretores de teatro,os mestres da cultura,os grupos de tradição,os cantores de barzinhos,os artistas visuais como Karimai, Chrystian Marques,Ricardo Campos,Nivia Uchoa,Alan Bastos,os cineastas Franklin Lacerda,Rosemberg Cariri,Rayane,Alanny Brito,Samuel Gomes,Netinho,Diego,são minhas grandes influências e a vocês todo o meu respeito,foram vocês entre tantos outros artistas que me fizeram acreditar que a arte pode permanecer viva em qualquer lugar e pode também ser vivida por qualquer pessoa,desmistificando aqui a ideologia do dom e meu olhar.
Alexandre Lucas - Como você ver o cenário musical do Cariri?
Fatinha Gomes - Crescente, latente, fervoroso, tenho paixão por tudo isso, paixão doida, diga-se de passagem.
Vejo nosso cenário musical como um amplo portal, nosso grande ponto de partida para grandes conquistas. Sou uma sonhadora, vira e meche, eu ainda me vejo numa atmosfera encantadora de tudo isso aqui, custa nada sonhar e de vez em quando perder um pouco o peso das dificuldades que enfrentamos em qualquer que seja a profissão que exercemos. Acredito que a união ainda faz muita diferença em qualquer processo de construção histórica a esse grupo que interessa.
Todo dia eu me surpreendo com a quantidade de grupos musicais que surgem na nossa região, fico tão feliz quando vejo adolescentes montando suas bandas,ensaiando,participando de festivais, com suas mais variadas tendências musicais, com suas mensagens, para mim tudo isso merece uma atenção ainda mais especial do poder público. Seria interessante investir em espaços gratuitos para ensaios, criar grupos que facilite a aproximação entre os artistas, cantores e compositores.
Esse misto de artistas mais renomados com os da nova geração é muito atrativo, um vinculo que fortalece e muito nossa edificação histórica musical,o Cariri é tão respeitado e amado por essas características e eu me orgulho muito de ter nascido aqui e eu quero ainda estar viva para ver meu Cariri avançar ainda mais nesse contexto,sou uma grande entusiasta das causas musicais .
Alexandre Lucas - Seu contato com a política tem inicio no movimento estudantil. O que isso
significou?
Fatinha Gomes - Significou muito, pois só a partir daí eu pude entrar em contato com uma juventude estudantil aguerrida, de escola pública, disposta a compreender transformar uma realidade conjunta. Foi aqui também que me senti inserida, me sentia acolhida, esse foi um divisor de águas na minha vida, pois naquele momento era tudo o que eu queria encontrar; uma galera que estivesse a fim de discutir arte, política,educação e cultura numa perspectiva critica.Consegui adquirir percepções menos ingênuas ao iniciar minha leitura de mundo e da realidade através do movimento estudantil.
Tive a oportunidade de alimentar sonhos de entrar para uma universidade, pintar o sete e desenhar o oito. Experimentei no movimento estudantil a maior de concepção de liberdade que alimentava naquela época.Hoje quero dividir minha experiência com a juventude que consigo manter contato.Eu indico.
Não sei exatamente se adquiri um absoluto amadurecimento político, pois sou inacabada, todos os dias aprendo, ensino,reaprendo,construo e desconstruo algumas das minhas convicções, mesmo assim vou trilhando meu caminho sempre.
Alexandre Lucas - Como você ver relação entre arte e política?
Fatinha Gomes - Livremente ligadas, algum momento elas podem se distanciar, mas muito importante quando se trata de exercer uma arte engajada que contenha forma, conteúdo e, sobretudo desígnios de alteração. Nesse caso seria o antagônico da arte pela arte. Arte e política devem estar alinhadas no intuito de promover a livre expressão critica do artista. Nada que prenda ou que oprima mesmo que esteja ligada a o mais poderoso argumento denunciativo, subversivo ou questionador. Arte-politica e liberdade se fazem necessária. Não necessariamente nessa ordem. Exerça.
Alexandre Lucas - Você acredita que artista deve ter um posicionamento político para ter compreensão do seu papel enquanto artista?
Fatinha Gomes - Desde que essa seja uma escolha dele, ninguém pode ser violentado pelas escolhas que faz ou por aquilo que não escolheu. Todos devem ser respeitados por suas opções e partir para um embate dialético. Nesse momento eu defendo uma arte que politize o sujeito, que faça com que ele sinta a força de transformar o meio em que ele atue, que compartilhe estratégias de superação do processo de desumanização causado pelo sistema capitalista.
Alexandre Lucas - Você tem uma preocupação sobre a ocupação do espaço musical pelas mulheres?
Fatinha Gomes - Tenho. Defendo que essa não é uma guerra pelo poder onde um fica submisso ao outro para que as coisas fluam. Homem e mulher têm o mesmo direito de conquista de espaço, mas em se tratando da mulher, eu defendo primordialmente, pois os meninos tiveram sua vez em muitas iniciativas humanas,mas só a pouco tempo é que a nós afloramos esse desejo de atração de espaço,na música como em qualquer outra escolha, esse é um direito que deve ser respeitado,uma etapa histórica que não deve ser queimada e que sucessivamente nos encontremos num ideal de respeito e igualdade de gênero.Que seja breve.
Na música Cariri eu vejo uma chama constantemente acesa nesse sentido. Muitas cantoras como Elisa Moura,Alci Ventura e Janinha Brito,tiveram um papel revolucionário por fazerem parte de uma das primeiras levas de mulheres que começaram sua profissão em barzinhos da cidade do Crato,sem elas seria muito difícil acreditar numa aceitação atual,essas são mulheres que dizem muito por sua capacidade de ultrapassar limites e barreiras impostas durante tanto tempo por uma tradição que agora ruma a tomar um novo formato cultural.Foi observando elas que comecei a me reconhecer e dizer:Eu também quero,eu também posso.
Cantoras como elas,Amélia Coelho,Mestra Margarida,Mestra Zulene,Dona Maria do Horto,Mestra Edite, fazem parte desse grande “domínio feminino”,( só para provocar,rsrsrs), de guerreiras Cariri .Esse espaço é uma grande miscigenação de estilistas,fotográfas,lavadeiras,cordelistas, modelos,desenhistas,prostitutas,estudantes,políticas, rezadeiras,cineastas e artistas visuais denunciam uma gama de anseios e atenções.
Alexandre Lucas - Depois de muitos anos você tira as suas poesias do baú?
Fatinha Gomes - Pois é. Que baú? Rsrsrsrs! Há pouco mais de um ano que eu tenho vivido muitos momentos poéticos na minha vida, tudo acaba se transformando num implexo de palavras, algo que externalizo para verbalizar as minhas observações. O Cariri é meu grande palco, é aqui que eu vivencio essas experiências. Retiro do meu dia-a-dia, da conivência social todas as coisas que escrevo. Sempre tive esse desejo, mas só agora eu me permito escrevê-las e publicá-las .
Alexandre Lucas - Como você caracteriza sua poesia?
Fatinha Gomes - Híbrida,racional, politizada e romântica imperfeita.
Alexandre Lucas - O que representa o Coletivo Camaradas na sua experiência estética e
artística?
Fatinha Gomes - Representa o plano material das ações, retirar do plano mental um discurso e partir para o campo de batalha.Foi no Coletivo onde reencontrei o desejo de pôr em prática e viver muito do que eu acreditava e desejava que fosse uma arte exercida no campo conceitual.
Ousar iniciativas de trabalhar arte na periferia com o Coletivo Camaradas foi muito interessante, pois foi lá onde tive a oportunidade de trabalhar com crianças e jovens.
O Coletivo Camaradas é minha grande “ escola” artística e que me amplia os horizontes para realizações futuras.
O Coletivo Camaradas é a minha casa.